Os anos perdidos & últimos dias de David Foster Wallace

Ele era o maior escritor da sua geração - e também o mais atormentado.Na esteira de seu trágico suicídio, seus amigos e família revelam o que aprenderam durante a luta de uma mente brilhante

escrito por DAVID LIPSKY

traduzido e editado por GUSTAVO NOLASCO 

Ele foi de dois metros de largura a 60 centímetros, e em um belo dia, ele pesava 200 quilos. Usava óculos estilo vovozinha com um lenço na cabeça, trançado na parte de trás, parecia meio pirata e meio dona de casa. Sempre usava o cabelo longo. Tinha olhos escuros, voz suave, queixo largo, adorável, e os lábios, que foram a sua melhor característica. Caminhava como um ex-atleta. David Foster Wallace trabalhava em quase tudo: romances, jornalismo, férias. Sua vida foi uma caçada a informações, coletando comos e porquês. "Recebi discretos 500.000 bits de informação hoje", ele disse uma vez, "dos quais 25 são, talvez, importantes. Minha missão é fazer com que alguns desses bits façam algum sentido”. Ele queria escrever "coisas sobre o gosto de viver, não coisas sobre tornar a vida mais leve”. Conquistou leitores fascinados em cima das revelações e recantos do seu estilo: sua comédia, seu brilhantismo e sua bondade.

Sua vida foi um mapa que termina no destino errado. Wallace foi um estudante de uma escola secundária, jogou futebol, tênis, escreveu uma tese filosófica e um romance. Antes de se formar em Amherst, foi para a escola, publicou o romance e, fez uma cidade de editores e escritores sonharem junto com ele. Publicou um romance de mil páginas (“Infinite Jest”, ainda inédito no Brasil) e recebeu um prêmio: as pessoas o viam como um gênio. Escrevia textos que proporcionavam, a quem o lia, o melhor esclarecimento do que significa estar vivo no mundo contemporâneo. Aceitou uma cadeira especial na Universidade da Califórnia para ensinar outras pessoas como escrever. Casado, publicou outro livro e, no mês passado (setembro), se enforcou, com 46 anos.

"A única coisa que realmente deveria ser dita sobre David Foster Wallace é que ele era o talento do século", diz o amigo e ex-editor Colin Harrison. "Nós nunca veremos um cara como este de novo nas nossas vidas. E o que eu vou gritar pro mundo, sobre ele, é que Wallace era como um cometa voando ao nível do solo."

Seu romance, Infinite Jest (Brincadeira Infinita, em tradução livre), lançado em 1996, era uma Bíblia em tamanho e gerou livros de interpretação e comentários, como Entendendo David Foster Wallace - um livro que os próprios amigos dele tiveram que comprar. Ele ficou deprimido por décadas, e só os familiares mais próximos e os amigos sabiam disso. "Acho que ele sentia vergonha por estar triste", diz o pai. "Seu instinto foi esconder."

Depois que ele morreu em 12 de setembro, os leitores lotaram a Web com tributos a sua generosidade, a sua inteligência. "Mas ele não era santo", diz Jonathan Franzen, o melhor amigo do Wallace e o autor de The Corrections. "O paradoxo dele é que quanto mais cedo você começa a lê-lo, e mais sombria é imagem que você tem dele, mais cativante ele se torna. E somente quando você o conhecia melhor é que tinha uma verdadeira compreensão do que é uma luta heróica, não só para se encaixar no mundo, mas para escrever de forma maravilhosa”.

David cresceu em Champaign, Illinois. Seu pai, Jim, era professor de filosofia na Universidade de Illinois. Sua mãe, Sally, professora de Inglês em um colégio da comunidade local. Era um acadêmico - calmo, atencioso -, tinha o quarto arrumadinho, e lá uma estante de livros. "Tenho essas lembranças dele". Wallace me disse durante uma série de entrevistas em 1996. "Eu me lembro dos meus pais lendo Ulysses em voz alta um para o outro na cama. Eles davam as mãos e se amavam." A mãe de Wallace, Sally, odiava ficar irritada – e às vezes demorava dias para se recuperar. Por isso, a família desenvolveu uma espécie de conflito. Quando a mãe dele tinha algo ruim a dizer, ela escrevia cartas. David também as escrevia e as passava por debaixo da porta.

David era misterioso, combinação perfeita entre as “qualidades” dos pais. Os títulos dos livros do seu pai - Normas Éticas, Casos particulares - tem o som dos títulos das histórias de Wallace. O tom da voz da mãe falando contém ecos da maneira de escrever dele. O livro didático dela, Praticando Inglês Sem Sofrimentos, soa como uma piada de David. Ela usa frases como "perece quente" para muito quente, ”curvando o  esqueleto" para ir para a cama. "David e eu temos uma enorme dívida para com a minha mãe", diz a irmã dele, Amy, dois anos mais jovem. "Ela tem uma maneira de falar que eu nunca ouvi em nenhum outro lugar."

David foi, desde pequeno, "muito frágil", como ele dizia. Adorava TV, e ficava incrivelmente animado assistindo programas como Batman ou The Wild West. David podia memorizar todas as falas e prever, como uma espécie de conspiração meteorológica, o destino dos personagens e quando uma história estava próxima do fim. Aos 14 anos ninguém o tratava como um gênio. "Quando perguntei a ele, em um dia de sábado, o que tinha feito, ele desceu as escadas e disparou um diálogo socrático. Fiquei admirada pela forma sofisticada do seu entendimento", diz Jim. "Naquele momento, eu descobri que ele era extraordinariamente brilhante".

David foi um grande garoto comum, jogou futebol até os 12 ou 13 anos, mas continuou abreviando as palavras como um atleta. "A grande coisa que eu queria ser, quando eu era pequeno, era ser um atleta sério", dizia Wallace. "Quero dizer, eu não tinha qualquer ambição artística. Joguei futebol municipal. E eu jogava bem. Só que havia dois caras na cidade que jogavam melhor que eu".

Ele também tinha pego uma raquete. "Eu descobri o meu próprio tênis. Em cinco anos, acreditava que iria me tornar um profissional. Não parecia tão bom, mas era quase impossível me vencer. Eu sei que soa arrogante. Mas é verdade”.

Na época ele tinha 14 anos, e sentiu que poderia virar um ídolo nacional. ”Mas justamente no ponto em que se tornou importante para mim, comecei a engasgar. Quanto mais você fica com medo, pior você joga”. Depois foi a década “Pink Floyd”. "Comecei a fumar muita maconha quando tinha 15 ou 16, e era difícil treinar”. Ele riu. "Você não tem muita energia."

Foi nessa fase que a família Wallace notou algo estranho. David começou a querer coisas como: pintar o quarto de preto. Ficava muito irritado com sua irmã. Quando tinha 16 anos, ele se recusou a ir à festa de aniversário dela. "Por que festejar o aniversário dela?", disse a seus pais.

"David começou a ter ataques de ansiedade na escola", recorda o seu pai. "Eu notei os sintomas, mas eu era muito ingênuo sobre esses assuntos. A depressão parecia assumir a forma de um espírito mau que assombrava David”. Uma parede do quarto dele era forrada com cortiça, lá ele pregava fotos de jogadores de tênis. Ele também pregou um artigo sobre Kafka na parede, com a manchete: A DOENÇA É A PRÓPRIA VIDA.

"Eu odiava ver aquelas palavras," diz a irmã, enquanto chora. "Não conseguimos entender porque ele estava agindo daquela maneira".

David terminou o ensino médio sem problemas. Em seguida decidiu ir para Amherst, cidade que seu pai tinha ido também. Lá David aperfeiçoou o estilo que iria usar para o resto de sua vida. "Eu sempre quis ser um impressionista", disse Wallace, "mas eu simplesmente não tenho agilidade para fazer isso".

Na nova cidade David fez um amigo, Mark Costello. Ele era um operário de Massachusetts, tem sete filhos, é irlandês e católico. “Dave era muito ligado às pessoas. Ele tinha a capacidade de estar na pele dos outros”.

Observar de longe as pessoas pode ser uma forma de evitá-las de perto. "Fiquei realmente com medo das pessoas", disse David.

Em uma tarde de abril, Costello voltou para o dormitório onde eles moravam e encontrou Wallace sentado em sua cadeira. Escrivaninha limpa, malas prontas, até mesmo a máquina de escrever, que pesava tanto quanto as roupas, estava embalada.

"Dave, o que está acontecendo?" perguntou Costello.

“Estou tão triste", disse Wallace. "Sei que estou te incomodando."

Ele estava indo embora. Costello o levou até o aeroporto. "Ele não era capaz de falar sobre o que estava acontecendo", recorda Costello. "Ele estava chorando, apavorado. Não podia controlar seus pensamentos. Era uma espécie de incontinência mental."

"Eu não estava muito feliz lá", disse Wallace mais tarde. "Eu me senti inadequado. Havia um monte de coisas que gostaria de ler e que não faziam parte da grade de nenhum colégio.”

Wallace, às vezes, participava das aulas de filosofia do pai. "As aulas se transformaram em um diálogo entre David e eu", relembra o pai dele. "Os alunos apenas sentavam, olhavam em volta e perguntavam: 'Quem é esse cara?". “Wallace devorou romances. Praticamente tudo que leu foi nesse período”. Ele também disse a seus pais como se sentia na escola. "Ele falava apenas que estava muito triste e solitário”, diz Sally. "Isso não tem nada a ver com ele ser amado ou não. Ele era muito solitário dentro de si mesmo".

Depois Wallace voltou a estudar em Amherst, com Costello. "Algumas coisas tinham sido destruídas na cabeça dele. No primeiro semestre de Amherst, ele estava tentando ser uma pessoa normal. Participava de debates e podíamos perceber que ele era o tipo de cara que seria um sucesso”. Em uma carta ao amigo, ele escreveu: "Quero escrever livros que as pessoas podem ler daqui a 100 anos”.

Em 1984, Costello foi para a Yale Law School. Wallace ficou sozinho.  Escreveu 700 páginas em cinco meses, e as chamou de A Vassoura do Sistema.

Wallace tinha histórias publicadas na revista literária de Amherst. Uma delas era sobre depressão e ansiedade.

"Você é a doença... Você percebe isso... Quando você olha para o buraco negro e se enxerga nele. Essa é a coisa ruim, quando você se auto-flagela. Quando você mata você mesmo. Todo esse negócio com as pessoas que cometem suicídio quando estão "gravemente deprimidas”, nós dizemos, "Putz grila, temos de fazer algo para impedi-los!" Isso está errado. Porque todas estas pessoas, a essa altura, já estão mortas. Quando "cometem suicídio", estão apenas nos contando isso."

Depois de Amherst, Wallace foi para a Universidade do Arizona. Foi quando ele começou com os lenços estampados: "Comecei a usá-los em Tucson, porque fazia uns cem graus o tempo todo, e o suor caía nas páginas”.

Arizona foi uma experiência curiosa. Na primeira aula, as pessoas não estavam felizes em vê-lo. Ele queria escrever do jeito dele – engraçado, estranho e não-linear. Os professores eram todos "realistas." Algumas de suas histórias começaram a ser premiadas. Ele enviou uma das historias para seu professor que o respondeu friamente: "Espero que isto não seja o melhor do que você está esperando fazer por nós”.

A Vassoura do Sistema foi publicado em janeiro de 1987, Wallace estava em no segundo e último ano no Arizona. O título se refere a algo que a avó dele costumava dizer. "Eu não tinha conhecimento sobre onde David ouviu isso”, diz sua mãe. "Fiquei emocionada ao saber que uma expressão da nossa família se tornou o título do livro."

"O romance bateu todos os recordes do que se poderia esperar," disse Howard – editor de Wallace. "Críticos o elogiaram. Vendeu muito bem, e David apareceu pro mundo".

Já em Nova York, Wallace iria abrir o The Wall Street Journal, e ver seu rosto transfigurado em alguma parte. Howard comprou o segundo livro de Wallace, Girl With Curious Hair, uma coleção de histórias que ele tinha escrito enquanto estava no Arizona. Mas Wallace estava inquieto. "Eu nunca encontrei uma mente como a de David", diz o editor. “Não atuando em um nível tão elevado. Ele vivia em estado de alerta. Por outro lado, sei que David tinha uma vida emocional conturbada, muita diferente de sua vida intelectual. Eu sabia que ele poderia se perder no espaço entre as duas”.

Wallace já estava à deriva do fosso. Ganhou um Whiting Writers' Award – estava em um palco. E então ele estava perdido. Tentou escrever em Tucson por um tempo, mas não conseguiu e então voltou para casa para escrever.

"Comecei a odiar tudo o que fiz", disse ele. "Achava tudo pior do que as coisas que tinha escrito na faculdade. Textos desesperadamente confusos, inacreditavelmente ruins. Eu estava realmente em pânico". Harvard ofereceu uma bolsa integral. A única coisa que faltava para ele retornar aos tempos da faculdade era reencontrar Mark Costello.

"Então ele apareceu com esse plano", recorda Costello. "Ele disse, 'OK, você está indo para Boston, exercer advocacia, e eu estou indo para Harvard. Nós vivemos juntos - e vai ser como a casa que tínhamos em Amherst. "Tudo acabou por ser um enorme fracasso", conta.

"Basicamente, foi o mesmo sintoma durante todo o tempo: essa incrível sensação de inadequação, de pânico. Ele uma vez me disse que quis escrever para calar a própria cabeça. Ele disse que quando escreve bem, se estabelece uma voz em sua cabeça que cala todas as outras. Aquelas que dizem: 'Você não é bom o suficiente, você é uma fraude”.

"Harvard foi incrivelmente sombria", disse Wallace. Tornou-se uma tremenda rotina: beber, festas, drogas. "Eu não queria sentir isso", disse ele. "Foi a única vez na minha vida que eu fui a bares, e agarrei mulheres que eu não conhecia”.

Vários atrasos foram segurando a publicação de sua curta história Girl With Curious Hair. Ele começou a ficar assustado.  "Tudo que eu tenho que fazer é ser genial, blá, blá, blá." Os cinco anos de relógio estavam passando novamente. Ele jogou futebol por cinco anos. Então ele jogou tênis de alto nível em cinco anos. Agora ele tinha sido escritor por cinco anos.Jesus, é a mesma coisa, de novo."

Foi o pior período da vida de Wallace. "Ele acreditava que era mais uma crise espiritual”, disse Costello. "Foi um sentimento de que tudo na sua vida era falso. E não havia nada, e ele não era nada – que se tratava de uma grande ilusão. Mas, ao mesmo tempo, se sentia melhor do que qualquer outra pessoa, porque conseguiu perceber isso”.

Em novembro, as ansiedades tinham ficado ainda maiores. "Eu fiquei realmente preocupado com a vontade de morrer. E eu sabia que, se alguém estava fadado a tentativa de suicídio, esse alguém era eu”. Ele passou por todas as salas do Serviço de Saúde.

“Eu estava muito envergonhado", disse Wallace. "Mas foi a primeira vez que me trataram como se eu tivesse algum valor”.

Ao dizer que queria se matar, Wallace ativou o protocolo. A polícia foi notificada e ele teve que sair da escola. Foi enviado para McLean, um hospital psiquiátrico.

Wallace passou oito dias em McLean. O diagnóstico dizia que ele estava em um quadro depressivo e para ajudar foi prescrito um remédio, Nardil, desenvolvido na década de 1950.

Girl With Curious Hair foi finalmente lançado em 1989. Wallace fez uma leitura em Cambridge. Treze pessoas compareceram, incluindo uma mulher esquizofrênica. "O que sai do livro parece uma espécie de incômodo, esse tipo de coisa devagar atrás de mim como um peido, desagradável."

A partir daí, entre muitas crises, Wallace não parou mais de escrever.

Estamos em 1996, ano de lançamento de seu maior romance Infinite Jest.

Wallace sempre esteve namorando alguém. "Tinha um monte de relacionamentos", diz Amy. Quando o visitei, vi um muro com um cartaz gigante da Alanis Morissette. "A obsessão por Alanis foi seguida pela fascinação por Melanie Griffith - uma obsessão de seis anos", disse ele. "Ela foi precedida por uma coisa que eu vou te contar. Eu tenho um monte de pequenas obsessões. Uma delas foi por Margaret Thatcher”.

Outro sintoma da sua timidez. "Diga o que você quer falar, psicóticos tendem a fazer o primeiro movimento". "Você não tem a sensação de que está machucando seus sentimentos a toda a hora?".

Seu "eu romântico" estava cheio de ansiedades. Ele me contou uma piada:

O que diz um escritor depois das relações sexuais?

Ele foi tão bom para mim como foi para você?

"Há, em minha literatura, uma certa mistura de sinceridade e de manipulação, uma tentativa de medir quanto o efeito de alguma coisa especial permanece nas pessoas", disse ele. "É um grande trunfo precioso que precisa ser desligado às vezes. Meu palpite é que escritores provavelmente tornam isso divertido para as outras pessoas. Mas a experiência para os autores é, muitas vezes, solitária."

Uma noite Wallace se encontrou com a escritora Elizabeth Wurtzel, cujo livro de memórias ,Prozac Nation, tinha sido recentemente publicado. Ela o julgou mal vestido - jeans e o sempre presente lenço estampado - e muito inteligente. Outra noite, Wallace a levou para um restaurante. Outros encontros aconteceram a partir daí. "Sabe, ele tinha um cérebro enorme, mas no final do dia, ele ainda era um rapaz."

Wallace e Wurtzel não falavam sobre a experiência pessoal - eles tinham em comum depressão e as consultas em McLean -, mas sobre a profissão, sobre o que fazer com a fama. 

Em 2000, Wallace escreveu uma carta ao seu amigo Evan Wright, um contribuinte "Rolling Stone": "Eu continuo tendo problemas com relacionamentos. Mas isso tem um lado bom, me conheço cada vez mais – estou comigo a maior parte do tempo. Mas em alguns dias, está tudo escuro para mim”.

No verão de 2001, Wallace foi até Claremont, Califórnia, para ser condecorado com o Roy Disney Edward, cadeira de Escrita Criativa, no Pomona College. Ele publicou contos e ensaios, mas estava tendo problemas com o seu trabalho. 

De acordo com Wallace, sua família e seus amigos, os últimos seis anos - até o fim - foram os melhores de sua vida. O casamento foi feliz, teve uma boa vida universitária, Karen, sua esposa, e David tinham dois cães, Warner e Bella e eles compraram uma casa adorável. "Dave, em uma verdadeira casa", diz Franzen, seu amigo, rindo, "com mobiliário real e verdadeiro estilo."

Franzen dizia que estava assistindo Wallace crescer. Agora, isso tinha parado. "Ele tinha razão para ter esperança", disse Franzen. "Ele tinha os meios para ser mais adulto".

E depois havia os cães. "Ele tinha uma predileção por cães, seja por meio de um sentimento de simpatia ou de identificação, ele teve um momento muito difícil disciplinando os animais. Mas ninguém poderia ver a sua atenção com os cães sem sentir um aperto na garganta".

Wallace estava seguro, começou a falar sobre parar com o Nardil, o antidepressivo que ele tinha tomado durante quase duas décadas. A droga havia uma longa lista de efeitos colaterais. "Com isso ele queria ser mais um membro da raça humana”.

Em junho de 2007, Wallace estava em um restaurante indiano com seus pais em Claremont. David de repente se sentiu muito mal - intensas dores estomacais. Seus pais ficaram com ele durante dias. Quando ele foi ao médico, descobriu que alguma coisa que havia comido tinha interagido com o Nardil.

"Então, nesse momento", diz a irmã Amy, “pensamos, 'Oh, Deus, nós fizemos um grande progresso nas últimas duas décadas, e tenho certeza que podemos encontrar algo que possa acabar com a depressão sem tantos efeitos colaterais". Eles não tinham idéia de que aquele medicamento era a única coisa que o estava mantendo vivo.

Wallace era um perfeccionista, sabe? Ele queria ser perfeito, e tomando Nardil, não era."

Naquele verão, David começou a parar gradualmente com o remédio. Seus médicos começaram a prescrever outros medicamentos. Nenhum parecia ajudar. "Eles não conseguiram encontrar nada", diz a mãe dele suavemente. "Nada."

Até outubro, seus sintomas tinham aumentado o suficiente para mandá-lo de volta ao hospital. Seus pais não sabiam o que fazer. "Comecei a me preocupar com isso", diz Sally. "Começou a queda de peso. Ele parecia o garoto de 14 anos que ia pra escola: cabelos compridos, olhos intensos, como se tivesse simplesmente saindo de uma aula em Amherst".

Quando Amy falava com ele ao telefone, "às vezes ele parecia criança ", diz ela. "A pior pergunta que você poderia fazer para o David no ano passado era "Como está?". E é quase impossível ter uma conversa com alguém que você não vê regularmente". Wallace foi muito honesto com ela. Respondeu: "Não estou bem. Estou tentando estar, mas não estou".

Apesar de sua luta, Wallace conseguiu manter a docência. Ele era dedicado aos seus alunos. Escreveu seis páginas de comentários de uma história curta, uma piada com sua classe, para tentar atingi-los ainda mais. Durante o horário de expediente, se houvesse uma pergunta que ele não conseguia responder, ele telefonava para a mãe dele. “Ele me ligava e dizia: ‘Mãe, eu tenho um aluno aqui... explique mais uma vez por que isso é errado? Nessa hora era possível escutar uma espécie de riso dos alunos em segundo plano que dizia: -Veja David Foster Wallace chamando sua mãe”.

No início de maio, no final do ano letivo, ele estava em um reunião com graduandos e idosos. Wallace respondia às perguntas. "Ele foi estrangulado até o final", lembra Sims Bennett, um de seus alunos. "Ele começou a nos dizer o quanto ele iria ficar triste em nos perder, e começou a chorar. E como eu nunca tinha o visto chorar, eu pensei que ele estava brincando. Então, ele soluçou e disse: 'Vá em frente e continue rindo, aqui estou chorando, mas eu realmente vou sentir falta de todos vocês”.

Nenhuma medicação tinha apresentado qualquer resultado contra a depressão. "Após este ano de inferno absoluto", diz Sally, “eles decidiram voltar para o Nardil”. Os médicos também o fizeram passar por 12 seções de eletrochoques, porque assim esperavam que a medicação pudesse fazer efeito. "Doze", Sally repete. "Esse tratamento é brutal", diz Jim. "A partir daí ficou claro: as coisas eram piores do que imaginávamos”.

Wallace fazia terapia de choque. "Isso manda essa merda para fora de mim", ele disse sobre o tratamento. "Meu cérebro é o que eu tenho. Mas eu podia ver que em certo ponto, por mais que eu implorasse, ele não funcionava". 

No final de junho, Franzen estava em Berlim. "Eu acordei assustado numa noite", diz ele. "Karen me disse para vir imediatamente: David tinham tentado se matar”.

Franzen passou uma semana com Wallace, em julho. David tinha perdido 70 quilos em um ano. "Ele estava muito magro. Havia uma coisa em seus olhos, estava apavorado, triste e distante. Mesmo assim, era divertido estar com ele”. Franzen sentava-se com Wallace na sala de estar e brincava com os cães, ou saia com David enquanto ele fumava um cigarro. "Nós discutíamos coisas. Ele falava sobre sua habitual linha de pensamento: 'A boca do cachorro é praticamente um desinfetante, de tão limpa. Não é como saliva humana. A saliva do cão tem germes muito resistentes". "Senti-me grato por ele permitir que estivesse ali, com ele", diz Franzen.

Seis semanas mais tarde, Wallace pediu para seus pais virem à Califórnia. O Nardil não estava funcionando. Pode acontecer com um antidepressivo, um paciente para de tomar, volta e, a medicação perde o efeito. Wallace não podia dormir. Ele estava com medo de sair de casa. 

Seus pais ficaram com ele por 10 dias. "Ele estava desesperado", diz sua mãe. "Estava sofrendo. Mas acredito que ele foi corajoso por um longo tempo”.

Wallace e os pais dele iam passear com os cães às seis da manhã. "Falávamos para ele o quanto estávamos felizes por ele estar vivo”, recorda a mãe dele. "Mas o meu sentimento é de que, mesmo assim, ele estava nos deixando. Só não queria acreditar nisso."

Algumas semanas mais tarde, Karen deixou David sozinho com os cães por algumas horas. Quando ela voltou para casa naquela noite, ele havia se enforcado.

"Eu não consigo tirar a imagem da minha cabeça", diz a irmã dele. "David e seus cães, no escuro. Tenho certeza que ele os beijou na boca, e disse a eles que estava arrependido."

2 comentários:

  1. Nossa!!! to boquiaberto com esta última postagem. Como leitor, digo que há tempos não via algo tão interessante!! Gustavo, vc teve paciência de traduzir este texto? Não vi esta edição da Roling Stone no Brasil... Nossa, mtas relevação interessantes!!! Sinceramente, parabéns por este texto... acho até melhor que os vídeos!! E eu ouço todo dia alanis, hein... isent it ironic, dont u think?? hahahha

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  2. Muito obrigado mesmo Daniel pela força! Essa matéria foi publicada no dia 30 de outubro na Rolling Stone americana. Confesso que tive que ter muita paciência, realmente. Mas o conteúdo valia a pena. Continue nos visitando e, não se esqueça "Junte-se".

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